"Formalidades não essenciais, aparências e preconceitos não podem preponderar sobre o melhor interesse da criança, impedindo-lhe de obter o reconhecimento jurídico daquilo que já é fato: o status de filha e integrante legítima do núcleo familiar formado pelos pares homoafetivos". Com esse entendimento, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) negou provimento ao recurso do Ministério Público do Estado de Santa Catarina e determinou a expedição da certidão de nascimento de uma menor de idade, constando nela o nome dos seus dois pais.
No caso, o Ministério Público interpôs recurso contra sentença que reconheceu um casal homoafetivo como pais de uma menina, fruto de inseminação artificial com gestação por substituição, sendo um deles pai biológico. A mãe doou os óvulos e cedeu o útero para a gestação.Logo após o nascimento renunciou, por meio de escritura pública, ao poder familiar com relação à infante. O MP alegou que o magistrado impediu-lhe de se manifestar acerca da questão de fundo da demanda, e que a hipótese retratada no caso é de adoção unilateral, o que transfere a competência para análise à Vara da Infância e Juventude.
Para o desembargador Domingos Paludo, relator, em seu voto, o caso não se trata de adoção unilateral, já que "a menina em questão jamais sofreu abandono ou rejeição", mas é fruto de um projeto de montagem de uma família com os avanços que a Ciência atualmente alcançou na área da reprodução humana. Paludo entendeu que, já que a mulher que gestou a criança abriu mão do poder familiar, "afigura-se desnecessário o manejo de ação de adoção unilateral e, igualmente, declinar a competência para processar e julgar o presente feito à Vara da Infância e Juventude".
Ideia arcaica - Para o magistrado, a ideia de que o reconhecimento da maternidade ou da paternidade provém, exclusivamente, da existência de vínculo biológico, é "arcaica". Assim, observado o princípio do interesse superior da criança, impõe-se conferir a dupla paternidade e suprimir qualquer identificação acerca da gestante no registro de nascimento da menina, a fim de adequar a situação jurídica da infante à realidade vivenciada e planejada com o objetivo de constituir família, cujos vínculos nascem na socioafetividade. "A parentalidade socioafetiva, fruto da liberdade/altruísmo/amor, também deve ser respeitada. O presente caso transborda desse elemento afetivo, uma vez que o nascimento da menina provém de um projeto parental amplo, idealizado pelo casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga, além do apoio incondicional prestado pela genitora, que se dispôs a contribuir com seu corpo a fim de realizar exclusivamente o sonho dos autores, despida de qualquer outro interesse".
O desembargador destacou que as famílias há muito deixaram de ter a figura convencional de marido, mulher e filhos, tornando-se, ao longo das transições pelas quais passa a Humanidade, qualquer agrupamento entre pessoas que se unem por afinidades e vínculos de amor e afeto. Ele destacou, ainda, que a menina, além de um lar amoroso, oriundo de dois pais que muito a desejaram, receberá proteção e circunstâncias favoráveis a um desenvolvimento saudável, "gesto plausível diante dos inúmeros casos de abandono e maus tratos aos infantes que comumente são analisados por este Juízo".
Domingos Paludo ressaltou que o caso não era de adoção e que seria "contrário à moral" encaminhar à adoção uma menina tão aguardada, "concebida em regime amoroso e desde então integrante de justas expectativas de uma família que goza da proteção do Estado, para constituir seu lugar em um ninho de amor, reduzindo-a do status de filha à condição de abrigada, sob princípios de uma legislação vetusta e ultrapassada, que deveras não produz bons frutos, em que pese a honradez de seus propósitos, não exime as crianças dessas misérias".